Violent Pornography: Duas horas de fúria e melodia com o System of a Down em Interlagos
O que mantém a banda viva no coração dos fãs, vinte anos depois
Em uma conversa recente no chat dos redatores deste nobre espaço, o redator Rogério “Catatau” Duartte perguntou: “O que há de tão incrível na System of a Down“? Era uma curiosidade genuína. Não havia desdém na pergunta, mas uma vontade sincera de entender o verdadeiro fenômeno que é a banda. É inegável a importância da banda no cenário do rock e do metal nos anos 2000. Eles mantiveram a música pesada viva no gosto dos jovens e ainda conquistaram fãs de outras gerações. Mas é entre os chamados millenials que está a base mais fiel de admiradores. Entre meus amigos nascidos na primeira metade dos anos 1990, o grupo de armênio-americanos é um consenso quase absoluto. Mesmo entre aqueles que não têm o rock ou o metal como preferência, o System é visto como uma banda de cabeceira — apesar dos vinte anos de silêncio desde os últimos lançamentos, Mesmerize e Hypnotize.
Vinte anos sem lançar um álbum e dez desde a última visita ao Brasil, Serj Tankian e companhia lotaram dois shows no Allianz Parque e tocaram para uma plateia em transe, que — figurativamente — virou o estádio de cabeça pra baixo. Entre rodas imensas iluminadas por sinalizadores, o que se via de longe parecia um ritual tribal. Enquanto me preparava para a — literal — travessia da Zona Norte de São Paulo até o Autódromo de Interlagos, onde o System encerraria a turnê, repetia na minha cabeça a pergunta feita pelo Catatau sobre o que torna essa banda um ícone geracional. Ao mesmo tempo, eu alinhava minhas próprias expectativas sobre o show. Os ingressos estavam esgotados e tudo levava a crer que seria ainda maior e mais intenso que os do fim de semana anterior.
Os trens da Linha 9–Esmeralda estavam abarrotados. Além do movimento normal do fim de tarde, milhares de pessoas vestidas com a indumentária clássica de um show de rock — camisas de banda, meias-arrastão, coturnos e muito, muito preto — se espremiam nos vagões rumo a Interlagos. Na abertura, a Ego Kill Talent fez uma apresentação morna para um público igualmente frio. A vocalista Emmily Barreto, que substituiu Jonathan Dörr em 2022, tentou engajar a plateia, mas o espaço ainda estava esvaziado e a resposta foi tímida. Em contraste, os americanos do AFI fizeram um show competente, com a energia certa para aquecer quem já enfrentava o frio e o vento no início da noite. Um Davey Havok extremamente barbudo liderou a apresentação, que teve faixas conhecidas como “Girl’s Not Grey” e “Silver and Cold”, encerrando com “Miss Murder” — talvez a mais famosa da banda, alçada a hit graças à franquia Guitar Hero.
A AFI deixou o palco e, então, se passaram quarenta minutos extremamente longos — algumas cervejas, muitos cigarros, e uma ansiedade coletiva que só crescia. Estima-se um público de 80 mil, talvez até 100 mil pessoas. Às 21h15, as luzes finalmente se apagaram, e labaredas vermelhas rasgaram a escuridão. Apesar da revista rigorosa na entrada, muitos conseguiram entrar com os famigerados artefatos, e pontos incandescentes se acenderam em todas as direções. Uma fumaça densa cobria boa parte da plateia enquanto o riff inicial de “X” começava a ecoar — brilhante, cortante, como se abrisse os trabalhos com um sopro, antes de vir o peso do resto da banda num rugido ensurdecedor. A partir daí, seguiram-se quase quarenta músicas em sequência, ao longo de duas horas e meia de ondas de som pesado que varriam o autódromo em volume arrasador.
Com poucas pausas longas e nenhum discurso inflamado entre as músicas, o System simplesmente tocou. Sem trocas de instrumentos, com precisão, com força, com fúria. Serj Tankian, embora visivelmente mais contido do que nos anos 2000, manteve sua entrega vocal impressionante, alternando entre berros caóticos e passagens melodiosas com maestria. Daron Malakian, sempre mais expansivo, era quem mais interagia com a plateia — sorria e brincava enquanto incendiava o público com riffs memoráveis. A banda praticamente emendava uma canção na outra, como se o show fosse uma descarga contínua de energia. Clássicos como “B.Y.O.B.”, “Aerials”, “Chop Suey!” e “Toxicity” foram cantados em uníssono numa catarse coletiva, quase religiosa. Um daqueles momentos belíssimos em que a música vira linguagem universal, unindo todos ali num só corpo que pulsava entre as chamas frias dos sinalizadores.
Talvez seja justamente essa autenticidade crua que explique a permanência do System of a Down no coração de tanta gente. Em um mundo onde o pop mergulha cada vez mais fundo na assepsia e na neutralidade, uma banda que grita sobre genocídio, guerra, desigualdade e alienação — com letras dadaístas e influências musicais tão diversas — poderia facilmente ser uma daquelas pérolas semidesconhecidas, adorada por um pequeno séquito de fãs ardorosos. Pelo contrário: O System é gigante porque nunca tentou agradar. É uma banda que cativa com sua sinceridade. As músicas são como têm que ser, entregando peso e melodia com a mesma intensidade com que entregam indignação. E, para uma geração que cresceu entre o excesso de informação e a ausência de sentido, isso ainda faz — e muito — sentido.
Nota pessoal do redator:
A 30e, responsável pela produção do show, subdimensionou — e muito! — a quantidade de pessoas com deficiência que estariam presentes, o que causou confusão tanto na área reservada quanto na entrada desse espaço. Ainda assim, como parceiro de uma pessoa com deficiência, só tenho a agradecer a cortesia e o apoio do staff, especialmente ao bombeiro civil Axel, que acompanhou minha companheira desde a entrada do Autódromo até a área designada. Também deixo aqui meu agradecimento e admiração ao baterista John Dolmayan, que, durante o show da AFI, veio pessoalmente à área para PCDs cumprimentar e tirar fotos com os fãs.