Crônicas

Repetições, Revolução e Insônia: Porque eu amo Spacemen 3

Alguns álbuns te escolhem e um dos que me escolheu foi o seminal “Playing With Fire”.

A insônia é uma constante na minha vida desde meus 16 anos. Não sei exatamente quando eu reparei que estava tendo problemas para dormir, mas eu lembro de sempre ter dormido o sono dos justos até a metade terceiro ano do colegial. Antes disso eu era aquele adolescente arquetípico que conseguia dormir vinte horas ou mais seguidas. Um belo dia me percebi mais cansado e sonolento que o normal na aula e, antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, eu estava deitado na cama de olhos abertos sem conseguir dormir.

Os anos passaram e a insônia ia e vinha. Alternavam-se momentos de paz e tranquilidade com noites em que eu me sentia soterrado pelos meus próprios pensamentos. Os dias se arrastavam e meu rendimento na faculdade era cada vez pior. Enquanto muitos de meus colegas trocaram o dia pela noite durante as intermináveis greves de 2003 e 2005, eu simplesmente permanecia acordado. Como foi perfeitamente colocado em Clube da Luta, tudo uma cópia de uma cópia de uma cópia.

Fiz de tudo. Fiz psicoterapia, consultei neurologistas e psiquiatras, tomei diversos tipos de medicação. Até fiz aqueles exames de polissonografia em que você é monitorado durante o sono e vai dormir cheio e eletrodos presos por ventosas no corpo. Foi a melhor noite de sono de toda a minha vida. É incrível. Se o seu plano de saúde cobre esse tipo de coisa, eu recomendo fortemente a experiência.

Porém, apesar de todas as tentativas, técnicas e tratamentos, a insônia sempre acabava voltando como aquele conhecido inconveniente que você não gosta mas que acha que você é o grande chapa dele. Passo meses, ou mesmo anos, dormindo razoavelmente bem e, sem aviso nenhum, lá estou eu mais uma noite perdida com meu cérebro girando por todo o mundo.

Talvez a pior época foi entre o segundo semestre de 2006 e o primeiro semestre de 2007. Muita coisa aconteceu nessa época. Mudanças de paradigma grandes, além de revoluções espirituais, mentais e físicas. Era como se fosse uma segunda adolescência comprimida num curto período de menos de um ano, mas sem as mudanças no corpo.

Nessa épocs, eu encontrei um companheiro inseparável: O álbum Playing With Fire da banda inglesa Spacemen 3.

No final de 2006 eu adquiri um exemplar do livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer. Embora eu tenha muitas críticas ao formato e até muitas das escolhas (pau no cu de quem botou The Zutons nessa lista), ele é um livro interessante. Folheei ele e passei por alguns clássicos, escolhas duvidosas e muita coisa que eu não conhecia. No meio disso tudo, uma banda chamada Spacemen 3. Não li a resenha antes de ouvir o disco. Li apenas o nome da banda e o nome do álbum, Playing With Fire, e me joguei. Mas mesmo se eu tivesse lido, acho que nada teria me preparado para ele.

O disco começa com “Honey”. Ela vem crescendo até emergir nos primeiros acordes e, contrariando qualquer expectativa, não vem pesada. Chega doce, melancólica, suave como uma brisa. Apenas a guitarra sem distorção acompanhando a voz. O baixo se resume a duas ou três notas repetidas esporadicamente. No fundo ouve-se um órgão tocando acompanhando o pedido do vocalista para seu amor. Não há bateria, e ela não faz a menor falta.

Isso era diferente de tudo que eu tinha ouvido até então e que eu ouvi desde então.

A doçura continua com a apropriadamente intitulada “Come Down Softly To My Soul”, ainda sem bateria e com guitarras e cordas que parecem dançar ao redor da melodia. Na sequência vem “How Does It Feel?”, possivelmente uma das minhas músicas favoritas de todos os tempos. Ela abre com Kember recitando os primeiros versos que terminam com a pergunta do título da música e nada mais. A voz dele some e começa a mesma repetição de A# que se ouve ao longo de toda a música. Aos poucos vem melodia gentil, tocando variações do mesmo tema e mais versos recitados. Cada compasso traz uma novidade e, pela primeira vez no disco aparece a bateria.

Seguindo o disco vem “I Believe It” que é basicamente apenas versos cantados por Pierce e um órgão alternando dois acordes como se estivesse inspirando e expirando. Os temas religiosos que permeiam toda a discografia de Jason Pierce se mostram aqui com versos como “Jesus died for my sins” (“Jesus morreu pelos meus pecados”).

“Revolution” e “Suicide”, duas músicas que levam como título duas das palavras que estampam a capa do álbum são as únicas que se aproximam minimamente de músicas de rock tradicionais. Distorções pesadas, bateria frentética e hipnótica e, ao mesmo tempo, o drone que é característico da discografia de Peter Kember. Enquanto “Revolution” tem (poucos) vocais, “Suicide” é instrumental.

Entre essas duas vem “Let Me Down Gently” e “So Hot (Wash Away All Of My Tears)”. A primeira é talvez uma das melhores músicas sobre um final de relacionamento já escritas. A versão original do álbum termina com “Lord Can You Hear Me?”. Com mais referências cristãs de Pierce, numa prece ele clama a Deus se Ele o ouve, sem resposta. É uma música trágica, lenta e triste por demais que dá o final perfeito pro álbum.

Mas porquê eu estou falando tudo isso? Na época eu tinha um Nokia 5310, mais lembrado pelo nome Xpress Music. O meu veio com um álbum inteiro do Chris Brown que eu nunca ouvi. Eu costumava ouvir música nele à noite, antes de dormir e uma dessas noites insones eu botei o Playing With Fire pra tocar.

Eu desmaiei.

Devo ter dormido nos minutos iniciais de “Honey”, porque não lembro de ter ouvido o resto do álbum, e tive a primeira noite de sono decente em meses. Repeti o experimento no dia seguinte. Deitei, botei o álbum pra tocar e estava dormindo alegremente nos braços de Morfeu antes de terminar a segunda faixa. Desde então, este álbum se tornou um companheiro inseparável. Não, ele não me dá sono. Pelo contrário, eu ouço ele normalmente em diversas ocasiões, inclusive enquanto trabalho. O que acontece é que ele me relaxa como poucas coisas neste mundo tem o poder de me relaxar. Me entrego às repetições infinitas de acordes e esqueço meus pensamentos. É como se fosse ruído rosa.

Na foto, talvez um dos melhores investimentos que fiz na vida.

Este álbum me apresentou à banda, que até hoje segue sendo uma de minhas favoritas. Ela acabou muitos anos antes de eu conhecê-los. O celular se perdeu e os anos passaram, mas eu continuei contando com este refúgio contra a insônia. Com o tempo descobri outros artistas e álbuns que me ajudaram a relaxar, desligar a mente e dormir, mas este foi o primeiro. A minha história com ele só não está completa porque ainda não adquiri uma cópia dele em vinil, mas isso deve ser resolvido em breve. Se você não conhece ainda, ouça. Mesmo se você não tem afinidade com bandas inglesas obscuras do final dos Anos 80, eu garanto que vale a audição. Talvez, como eu, você encontre nele um companheiro.

Texto postado originalmente no meu Medium em 12 de setembro de 2020.

Alexandre Aimbiré

Alexandre Aimbiré

Estudante de Letras, guitarrista de fim de semana, DJ ocasional, leitor ávido de Wikipédia e escritor de romances de gaveta. Manézinho de nascimento, criado em Porto Alegre e atualmente mora em São Paulo. Como todo bom crítico, já tocou em várias bandas que não deram em nada.

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